O CARNAVAL DO SILÊNCIO


O Carnaval não se vive da mesma maneira.
Cada povo tem a sua forma especial de sentir estes dias que marcam a transição de um viver mais profano para uma forma de estar que se quer mais reflexiva, de acordo com os ensinamentos da Igreja Católica, porque se aproxima a Quaresma, o período de quarenta dias que antecedem a principal celebração do Cristianismo, que é a Páscoa, a ressurreição de Jesus Cristo, comemorada no domingo. Esta é a tradição dos crentes desta confissão religiosa, um ritual presente na vida dos cristãos desde o século IV.

Nos dias que antecedem esta quadra santa, cristãos e não cristãos entregam-se de corpo e alma ao mundo e à festa. E Veneza é o lugar onde se vive o mais belo Carnaval, muito diferente de outros, marcado pelo silêncio, a opulência dos trajes, os olhares escondidos por máscaras de uma beleza infinita, que garantem o anonimato de quem as traz. Tudo como em séculos passados, em que os cidadãos desta cidade, para sempre a República Sereníssima, deambulavam na noite, pelos seus vicoli, os becos estreitos que encurtam distâncias entre os caminhos e os palácios de Veneza.

Para quem gosta de se refugiar neste limbo, arrebatado pela cor dos veludos, das sedas e gobelins, dos tecidos nobres recamados de pérolas e de toda a sorte de adereços, das máscaras esculpidas com génio e inovação, mas onde impera a cerimónia e o silêncio, nada como zarpar até Veneza!

Veneza, a capital da região de Vêneto, composta por uma centena de ilhas que foram construídas em plena lagoa no Mar Adriático. A cidade cujas estradas são feitas de água, atravessada pelo Gran Canal, que praticamente a divide em duas, serpenteando até chegar à Laguna,  ladeada por palácios góticos e renascentistas ostentando as mais belas fachadas. 

Um espectáculo que materializa o estilo gongórico da sua arquitectura , num ambiente de um fascinante imobilismo e uma quase irreal realidade. Quem a visita pode imaginar o que ela foi em séculos passados, de tal forma é impressiva a sua presença, o seu traçado, a sua tradição!

   


As máscaras foram usadas pela antiga nobreza italiana que se mascarava para passar anónima entre o povo.
Com o Carnaval, que surgiu em Veneza em meados do século XVI, popularizou-se o uso das máscaras brancas, prateadas e douradas, a sua peça mais icónica.
Hoje, o Carnaval dura 10 dias e atrai milhares de turistas que admiram os trajes característicos do século XVIII e as máscaras maravilhosas, bem diferentes das que eram usadas em tempos idos.




Na Praça de S. Marcos, os Venezianos reúnem-se para exibir os seus ricos trajes, com um olhar impenetrável e um constante silêncio, e, por cortesia, fazem poses para as esperadas fotografias que correrão o mundo. Na verdade, estes Venezianos são uma verdadeira atracção turística, facto que aceitam com algum garbo e com um discreto charme.
 



O pormenor dos sapatos manufacturados com pérolas e bordados a fio dourado.



Pose de grupo





 O Veneziano, em pausa, encostado a uma das colunatas da Praça de S. Marcos, próxima do Café Florian, uma das preciosidades históricas e um emblema da restauração de Veneza, absolutamente imperdível.




A loja Ca’Macana, onde o genovês Mario Belloni fabrica máscaras de forma artesanal é praticamente despercebida para o turista desprevenido ou apressado, pois  é um dos últimos artífices que faz do seu ofício uma arte, libertando das suas mãos peças verdadeiramente únicas. 
Foi precisamente a sua excelência que levou Stanley Kubrick a encomendar, conjuntamente com mais três artesãos, as máscaras usadas no seu último filme, com uma mensagem simbólica carregada de pesadelo e erotismo do Eyes wide shut (1999) em que Tom Cruise e Nicole Kidman contracenaram, também e surpreendentemente pela última vez, como casal.
 




A misteriosa beleza de um olhar perdido na laguna, enquanto o corpo desliza como uma serpente ...  




Um momento de conversa....



 Um casal que observa quem passa ...




 E o momento em que sou convidada para posar...



Um dos últimos desfiles que encerram o Carnaval a passar sob as arcadas laterais da Praça de S. Marcos. 




 Logo pela manhã, este amistoso cão, na serena hora em que Veneza está livre da horda de turistas que "varrem" a cidade, com uma pressa irracional para capturar imagens ou selfies, sem olhar e ver o encanto das coisas.




Veneza vista de cima,  do alto da Campanile, numa manhá cinzenta.




 A placa comemorativa no observatório do Campanile, dedicada a Galileu que, com os seus binóculos, alargava os horizontes da Humanidade




 A água esverdeada do canaleto denuncia a chuva que caiu e o frio que ainda se sente neste Carnaval.


Um breve momento.
O voo das aves a cruzar os céus azuis de Veneza, numa manhã de sol.




 Na fachada do Palácio dos Doges, um Veneziano observa a laguna.


 De costas viradas para a laguna e, muito ao longe, fora de visão, a ilha de Lido, este par espera pela fotografia.



 Os típicos recantos de uma Veneza indecifrável e labiríntica.


 

Deambular pelos campi (praças) e vicoli (becos) de Veneza traz-nos incessantemente à memória a música de António Vivaldi, o padre ruivo, assim conhecido pela cor dos seus cabelos. Ordenou-se padre em 1703 mas dedicou a sua vida à arte que o imortalizou.
Diz-se que certa vez Vivaldi teve uma ideia para uma música e saiu a correr no meio de uma missa para a escrever, abandonando o altar. 
Em muitas igrejas, há concertos com a música de Vivaldi e são mesmo irresistíveis.

Em baixo, o museu da música, na Chiesa di S. Maurizio, muito perto de uma das margens do Grand Canal.
Diante do altar, os violinos recordam que a música é um dos tesouro da cidade.



"Se eu tivesse que encontrar uma palavra que substituísse "música", eu só conseguiria pensar em Veneza."- assim falou Friedrich Nietzsche que aqui viveu em 1880, na sua estadia prolongada em Veneza.
   



Agradavelmente "perdidos" na miríade de pequenos canais e pontes que, muitas vezes, nos conduzem a locais sem saída.



Um ristorante, num canaleto.



 Panorâmica do Grand Canal, com os seus palácios.

Sentir Veneza é recordar Casanova, que se disfarçava de Pierrot para se aproximar das cortesãs, nos bailes dos palácios, fazendo jus à sua lendária fama de conquistador.
Aventureiro e conquistador, Giacomo Casanova teve uma vida atribulada, cresceu e viveu numa Veneza libertina onde quase tudo era permitido.
Sempre envolvido em aventuras, dada a sua paixão incontrolável por mulheres, dedicou a sua vida a amar, sem adoptar qualquer técnica sofisticada de sedução.
A sua conquista tinha a ver com a sua pulsão e o sincero desejo de cortejar mulheres.
Não fazia promessas nem quebrava corações: “…nunca contrai dívidas de alma, pois as suas relações são sempre leais, são simplesmente de ordem sexual e sensual. Ele não provoca nenhuma catástrofe, fez muitas mulheres felizes (…) todas saem intactas de uma aventura para voltar à vida quotidiana. Nenhuma delas se suicida nem se abandona ao desespero; o seu equilíbrio interior não é perturbado (…) Ele conquista sem destruir, seduz mas não desmoraliza.” como sustentou o grande e prolixo escritor e dramaturgo austríaco Stefan Zweig no seu livro "Casanova: a Study in Self Portraiture".
 

A Basílica de São Jorge Maior, na pequena ilha com o mesmo nome, frente à Praça de São Marcos. Sempre bela com a sua estacaria única que sinaliza a estrada de mar para as embarcações.
 



 E a vista desde a Basílica de S, Jorge Maior para a Praça de S. Marco.




Visitar Veneza sem entrar no Café Florian é como "ir a Roma sem ver o papa".
Um dos cafés mais antigos do mundo, abriu portas em 1720 com o nome "Alla Venezia trionfante" (Veneza Triunfante), mas tornou-se conhecido como Caffè Florian, nome do seu proprietário original (Floriano Francesconi). 
Frequentado por clientes notáveis como J. W. Goethe e Casanova, este atraído pelo facto deste ser a única cafeteria que permitia a presença de mulheres. 
Mais tarde Lord Byron, Marcel Proust e Charles Dickens foram assiduos neste estabelecimento belíssimo, onde a baixela é de prata e somos servidos com um luxo sem pretensões.



 O clima descontraído de uma manhã de Carnaval.


 Algumas das sobremesas preparadas para o serviço de almoço.
 


Mas Veneza é também evocar Otelo, o Mouro de Veneza, de Shakespeare.
Uma história sobre o ciúme, a intriga, o amor e a traição que leva ao assassínio de Desdémona,actual como todo olegado deste genial dramaturgo.
 
Morte em Veneza, a obra.prima de Luchino Visconti, baseado no romance de Thomas Mann (1912), é uma memória constante. Naquele Verão assolado pelo vento quente que sopra do mediterrâneo, não se diluem as imagens do amor, de decadência e da morte à beira do mar. 

Foi o Carnaval de 2016



Com um último olhar, vemos as gôndolas e saímos de Veneza.



  

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